O Papel da Equipe nas Práticas Grupais na Atenção Básica em Saúde

The Role of the Healthcare Team in Group Practices on Primary Healthcare

El Rol del Equipo en Prácticas Grupales en la Atención Primaria de Salud

Ana Caroline Secco

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Camila Almeida Kostulski 1

Dorian Mônica Arpini

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Resumo

Introdução: As práticas grupais têm sido um dos recursos técnicos de grande potencial para a promoção da saúde na atenção básica. O objetivo do estudo foi compreender o papel da equipe de saúde no campo das práticas coletivas, em especial a partir da experiência de grupos na Atenção Básica (AB). Método: Realizou-se uma pesquisa qualitativa, por meio de entrevistas semiestruturadas com dez participantes de um grupo de promoção de saúde e observações de quatro encontros do respectivo grupo. Os dados foram triangulados e analisados por meio da análise de conteúdo temática. Resultados e Discussões: Evidencia-se que os profissionais de saúde parecem comprometidos com as práticas grupais, estabelecendo uma relação de vínculo, acolhimento, proximidade e cuidado, realizando um trabalho vivo em ato, marcado pelo reconhecimento dos usuários como protagonistas. Conclusões: O estudo constatou relevância das práticas grupais na AB, numa concepção ampliada de cuidado, sendo essa uma das contribuições deste trabalho.

Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde, serviços comunitários de saúde, equipe de saúde, processos grupais

Abstract

Introduction: Group practices have been a technical resource of great potential for health promotion in primary healthcare. This study sought to comprehend the role of the healthcare team in the field of collective practices, especially in Primary Healthcare (PH) groups. Method: A qualitative research was conducted, through semi-structured interviews with ten participants of a health promotion group and four meetings observations of that group. Data were triangulated and analyzed through thematic content analysis. Results and Discussions: The results showed that health workers seem to be committed to the group practices, establishing a relationship of bonding, acceptance, closeness, and patient-centered care. Besides, these professionals were performing a live work in act, marked by respect, affection, and acknowledgment of users in leading roles of their history. Conclusion: The study demonstrated relevance in group practices developed on PH, in a widening conception of care, which is one of this papers’ contributions.

Keywords: Primary Healthcare, community health services, healthcare team, group practices

Resumen

Introducción: Las prácticas grupales han sido uno de los recursos técnicos de mayor potencial para la promoción de salud en la atención primaria. El objetivo del estudio fue comprender el rol del equipo de salud en las prácticas colectivas, especialmente desde la experiencia de grupos en Atención Primaria (AP). Método: Se hizo una investigación cualitativa, con entrevistas semidirectivas con diez participantes de un grupo de promoción de salud y observación de cuatro reuniones del grupo. Los datos fueron triangulados y analizados tras el análisis de contenido temático. Resultados y Discusiones: Los trabajadores de salud parecen comprometidos con las técnicas grupales, estableciendo relaciones de vínculo, acogimiento, cercanía y cuidado, además de hacer un trabajo vivo en acto, marcado por el reconocimiento de los usuarios como protagonistas. Conclusiones: Este estudio constató la relevancia de las prácticas grupales en AP, desde una perspectiva amplia de cuidado, siendo esa una de las contribuciones del artículo.

Palabras clave: Atención Primaria a la Salud, servicios comunitarios de salud, equipo de salud, procesos de grupo

Introdução

A Atenção Básica constitui o primeiro nível de complexidade de atenção à saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). É considerada a principal porta de entrada dos serviços públicos de saúde e refere-se a um conjunto de práticas direcionadas a responder às necessidades individuais e coletivas (Silva et al., 2017; Ministério da Saúde, 2011; 2017). As ações na AB iniciam-se com o ato de acolher, escutar e oferecer resposta resolutiva para a maioria dos problemas de saúde da população, responsabilizando-se pela efetividade do cuidado. Além disso, desenvolvem-se por meio de práticas de cuidado integrado, com equipe multiprofissional, de forma que os saberes possam ser compartilhados e ampliados (Ministério da Saúde, 2011; 2017).

O Programa Nacional de Humanização na Saúde (PNH), criado em 2004, aponta a necessidade da prestação de um cuidado acolhedor, com uma melhor comunicação entre os profissionais e os usuários, a fim de “construir trocas solidárias e comprometidas, com a tarefa de produção da saúde e produção de sujeitos” (Ministério da Saúde, 2010, p. 17). Nesse sentido, as atividades coletivas realizadas na AB poderiam ser ferramentas para estreitar os laços de confiança da população com a sua equipe, fortalecendo a relação usuário-profissional com vistas ao desenvolvimento da cidadania, tornando, assim, a população assistida corresponsável pela manutenção da sua saúde (Teixeira et al., 2014).

As atividades coletivas na AB, em especial as atividades grupais, têm grande importância para a consolidação de um serviço comprometido com a construção social da saúde. Essas atividades frequentemente estruturam-se em ações educativas nas quais se preconiza um contato próximo e dialógico entre os usuários e os profissionais da equipe. Assim, ambos, de forma compartilhada, podem construir conhecimentos e compromissos que contribuam para a reorientação do modelo assistencial, com base na concepção ampliada do processo saúde-doença (Teixeira et al., 2014). Desse modo, espera-se dos profissionais da AB que desenvolvam conhecimentos e práticas baseadas em uma perspectiva integrada de análise dos problemas e encaminhamento das soluções, buscando estimular a participação da população no controle social e incentivando ações coletivas, comunitárias e de atenção integral às famílias e comunidades (Onocko-Campo & Gama, 2013).

Cabe ainda destacar a importância dos agentes comunitários de saúde (ACS) nesse modelo de atenção à saúde. Esses profissionais são fundamentais na consolidação do SUS, por seu caráter de permanência e continuidade e por entender o processo de cuidado como estando direcionado à pessoa, e não à doença. Nesse sentido, suas ações têm ênfase no fortalecimento do vínculo entre os profissionais da equipe e a comunidade, fortalecendo ações de promoção de saúde. Além disso, realizam atividades como: visitas domiciliares, acolhimento e ações comunitárias, de modo que estes profissionais estão frequentemente envolvidos em práticas de caráter grupal e comunitário (Secco et al., 2020).

Nesse ensejo, as práticas grupais, foco do presente estudo, apresentam-se como uma das ferramentas potentes de que a AB pode dispor, com vistas à melhoria da qualidade de vida dos usuários, da ampliação da rede de apoio, fomentando a solidariedade. Ainda, para Onocko-Campos e Gama (2013), as práticas grupais são estratégias importantes de socialização, integração e apoio psíquico, além das trocas que se produzem nestes espaços. A experiência do trabalho em grupo pode favorecer a produção coletiva de conhecimento, auxiliando no desenvolvimento de processos reflexivos que apontem estratégias de enfrentamento dos desafios, necessidades, expectativas, angústias e circunstâncias de vida que têm impacto na saúde dos indivíduos (Dias et al., 2009). Dessa forma, uma de suas potencialidades, para além do encontro com o outro, repousa na possibilidade de promover saúde e educação por meio da articulação entre saberes técnicos e populares, bem como na possibilidade de mobilizar recursos institucionais e comunitários para o enfrentamento dos problemas de saúde (Maffacciolli & Lopes, 2011).

Além disso, o trabalho em grupo, quando realizado por meio de um nexo dialógico e emancipador, pode levar a uma quebra da relação vertical que, tradicionalmente, existe entre o profissional da saúde e o usuário (Araújo et al., 2017). No contexto da AB, o trabalho com grupos é uma das atribuições comuns a todos os profissionais da equipe e pode ser considerado como uma alternativa para as práticas assistenciais ditas tradicionais (voltadas ao modelo biomédico), pois estes espaços compartilhados favorecem a valorização dos diversos saberes e a possibilidade de intervir criativamente no processo de saúde-doença, além de ultrapassar a lógica medicamentosa e propiciar um cuidado mais integrado e de cunho mais ampliado (Dias et al., 2009; Ministério da Saúde, 2017).

Entretanto, apesar das potencialidades das atividades grupais, diversos estudos têm apontado para uma baixa aderência dos usuários, com frequente insucesso em longo prazo. Os principais motivos pelos quais os usuários não participam das atividades grupais realizadas na AB têm sido apontados como a falta de tempo e de interesse. A falta de tempo estaria relacionada às atividades laborais e domésticas desempenhadas pelos usuários, e o desinteresse se daria em função da fragilidade no alcance das informações oferecidas pela equipe. Dessa forma, Araújo et al. (2017) apontam como estratégias para aumentar a participação nos grupos uma aproximação e comunicação entre equipe e usuários por meio de uma maior divulgação das práticas grupais por parte de todos os profissionais do serviço.

Outro aspecto a ser ponderado é o fato de que as demandas dos grupos seriam geradas pelos profissionais, e não pelos usuários; além disso, a falta de capacitação e de referências teóricas e metodológicas que orientam as ações dos profissionais na coordenação de grupos nos serviços de saúde é, também, um aspecto que estaria contribuindo para o insucesso das atividades grupais (Mendonça & Nunes, 2015). Diante desses desafios, o presente artigo buscou compreender o papel da equipe de saúde no campo das práticas coletivas, a partir da experiência de grupos na AB, mais especificamente, de um grupo de promoção de saúde.

Cabe salientar, ainda, que o pressuposto epistemológico adotado nesta pesquisa foi a Sociologia Compreensiva, pois esta abordagem considera que as realidades sociais são construídas nos significados e por meio deles, e “só podem ser identificadas na linguagem significativa da interação social” (Minayo, 2013, p. 97). Esse pressuposto foi escolhido por se tratar de grupos sociais, na medida em que o comportamento de um indivíduo pode influenciar o comportamento dos demais. Esse pressuposto busca compreender e explicar a dinâmica das relações sociais, que são depositárias de crenças, valores, atitudes e hábitos. Além disso, trabalha com a vivência, com a experiência, com a cotidianidade e também com a compreensão da realidade como resultado da ação humana objetivada, na qual a subjetividade é constitutiva e fundamento do sentido da vida social (Minayo, 2013). Assim, para a sociologia compreensiva, o significado é o conceito central de investigação, sendo este um dos pontos essenciais no presente estudo.

Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório. A pesquisa qualitativa busca trabalhar com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes sob a ótica dos atores envolvidos, considerando esse conjunto de fenômenos humanos como parte da realidade social (Minayo, 2014).

A produção de informações postas em análise neste estudo foi obtida por meio de observações de um grupo de promoção de saúde e da realização de entrevistas semiestruturadas com participantes do grupo. Como procedimentos da pesquisa, em um primeiro momento foi realizado o contato com o Núcleo de Educação Permanente em Saúde (NEPES) do município, para apresentação do projeto de pesquisa e solicitação do Termo de Autorização Institucional. Após este momento, o projeto, fundamentado na Resolução n. 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde, foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria, sob o CAAE 64990317.1.0000.5346.

Em seguida, foi realizado contato telefônico com as unidades de saúde do respectivo município (exceto distritos rurais), a fim de verificar quais delas ofereciam a modalidade de atendimento grupal. Dentre as 21 unidades contatadas, 7 desenvolviam esta modalidade de trabalho. Porém, alguns desses grupos tinham frequência trimestral ou eram realizados por acadêmicos da área da saúde de universidades da cidade. A partir do levantamento dessas informações, quatro unidades foram pré-selecionadas, sendo que a escolha da unidade na qual o estudo foi realizado se deu em razão do tempo de existência do grupo. Este grupo no qual o estudo teve foco tem mais de 20 anos de trajetória, é aberto à comunidade, tem uma frequência mensal e duração média de 2 horas. É coordenado pelos profissionais de saúde, em especial por agentes comunitários de saúde e profissionais da enfermagem, tendo em torno de 12 a 20 usuários.

Para dar início ao estudo, a pesquisadora (primeira autora) participou de um encontro juntamente à enfermeira da unidade, momento no qual pôde ser compartilhada a proposta do estudo e ser solicitada autorização aos participantes para a realização das observações do grupo. Após a permissão dos participantes, a enfermeira responsável assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), autorizando formalmente a realização da pesquisa no local; da mesma forma, cada um dos participantes do estudo assinou o TCLE.

Durante as observações, a pesquisadora fazia anotações no diário de campo, como também interagia com os participantes no início e após o término do grupo. Assim, ao final da de cada observação, a pesquisadora conversou com alguns usuários, quando estes atendiam ao critério de inclusão do estudo, que foi: ao frequentar o grupo há pelo menos seis meses, eram convidados a participar da pesquisa. Com isso, participaram do estudo dez usuários vinculados ao grupo de promoção de saúde.

A entrevista foi realizada a partir de três eixos norteadores, sendo o primeiro relativo à inserção e à participação do usuário no grupo; o segundo acerca dos significados da experiência de grupo no contexto de vida do participante; e o terceiro relativo às percepções e aos sentimentos no que diz respeito ao grupo. Neste artigo, a ênfase será dada ao primeiro e ao último eixo, uma vez que este artigo é um recorte da dissertação de mestrado intitulada: “Os grupos de promoção de saúde como dispositivos de cuidado na atenção básica”. Para as observações do grupo, também foram elencados eixos temáticos norteadores, sendo eles: relação estabelecida entre o coordenador e os participantes do grupo; interação – relacionamento interpessoal entre os membros do grupo; forma de condução do grupo; temáticas/assuntos abordados.

Foram realizadas quatro observações e dez entrevistas, sendo as últimas feitas individualmente, gravadas e transcritas. Estes números foram definidos a partir do critério de saturação, que se dá quando as informações coletadas com certo número de participantes passam a se repetir, entendendo-se que o conteúdo de novas entrevistas não trará novos dados ao estudo (Turato, 2013). Para manter o anonimato dos participantes, eles foram apresentados com a letra P (participante), seguida do número que representavam na ordem das entrevistas (P1, P2, P3 etc.). Desse modo, o detalhamento da caracterização dos participantes será descrito na Tabela 1.

Tabela 1

Características dos Participantes da Pesquisa

Participante

Sexo

Idade

Ocupação

Tempo de participação

no grupo

P1

F

75

Empregada domésticaaposentada

20 anos

P2

F

78

Técnica de enfermagem aposentada

Cerca de 13 anos

P3

F

84

Costureira aposentada

3 anos

P4

F

55

Dona de casa

18 anos

P5

F

58

Dona de casa

10 anos

P6

F

49

Técnica de enfermagem desempregada

Cerca de 3 anos

P7

F

62

Costureira

18 anos

P8

F

71

Aposentada

Cerca de 12 anos

P9

M

76

Operador de máquina aposentado

20 anos

P10

M

55

Funcionário público aposentado

6 meses

Nota: Dados da entrevista, construída pelas pesquisadoras.

O material resultante das entrevistas foi analisado a partir da análise de conteúdo proposta por Bardin, que se caracteriza por um conjunto de instrumentos metodológicos aplicados aos discursos, que analisam as comunicações, decompondo-as e elencando-as em unidades de sentido, para, posteriormente, realizar o seu reagrupamento de categorias definidas por sua similaridade (Bardin, 2010).

Inicialmente, a análise do material coletado foi feita de forma individual, por meio de uma leitura atenta e exaustiva, na busca por aspectos que se repetiam e se destacavam. Posteriormente, os dados foram analisados em sua totalidade, dando origem às categorias globais de análise baseadas nos temas que se mostraram relevantes, não apenas por sua frequência, mas por se destacarem no discurso dos participantes. Esses temas foram a base para posterior organização das categorias e subcategorias, tendo essa subcategorização a finalidade de colocar em evidência aspectos que merecem ser discutidos e que mantêm dependência temática com o tópico global (Turato, 2013).

Para a interpretação do material, foram incluídos os dados do diário de campo, os quais são complementares aos achados das entrevistas e passaram pelos mesmos procedimentos, sendo analisados individual e exaustivamente e, depois, no conjunto dos dados. Posteriormente, essas informações foram cruzadas com as resultantes das entrevistas, realizando-se, assim, a triangulação das duas técnicas. A triangulação se propõe a produzir um conhecimento mais amplo e aprofundado da temática pesquisada, consistindo em combinação e cruzamento de diferentes pontos de vista por meio do uso de múltiplas técnicas utilizadas na realização de pesquisa (Minayo, 2014).

Destaca-se que os dados foram organizados em duas categorias, intituladas: “O papel da equipe de saúde para a efetivação dos princípios e diretrizes da atenção básica: acolhimento e vínculo” e “A equipe e a produção do cuidado: o trabalho vivo em ato”.

Resultados e Discussão

O papel da equipe de saúde para a efetivação dos princípios e das diretrizes da atenção básica: acolhimento e vínculo

Essa categoria tem a premissa de que acolher bem faz com que o vínculo do usuário com o serviço se efetive de forma mais satisfatória. Os participantes expuseram aspectos relevantes referentes a essa perspectiva, manifestando que se sentem acolhidos e que construíram um vínculo forte com a equipe. A Política Nacional da Atenção Básica (PNAB), no que diz respeito às atribuições dos membros das equipes de Atenção Básica, em seu artigo VI, destaca a responsabilidade do acolhimento, viabilizando o estabelecimento do vínculo. Destaca-se ainda que o acolhimento deve ser uma ação presente em todas as ações de cuidado, constituindo-se na prática de receber e escutar pessoas (Ministério da Saúde, 2017).

Pode-se perceber esse vínculo por meio da fala da P1, que, ao se referir à equipe, verbaliza: “Muito me ajudaram. Desde o início, sempre foram muito boas. Já fui muito bem atendida ali” (P1, comunicação pessoal, 18/04/17). Da mesma forma, a P3 relata: “Consulto ali no postinho. Até gosto muito. Tá muito bom, pra mim tá bom, eu não tenho queixa” (P3, comunicação pessoal, 23/05/17). A P1 continua “. . . e agora tem tudo assim, tem esse acolhimento assim, que é muito bom” (P1, comunicação pessoal, 18/04/17).

No processo de consolidação do modelo de atenção à saúde, de reorganização das práticas de cuidado e de qualificação da assistência, o acolhimento, assim como exposto pelos participantes, têm proposto a inversão da lógica de organização e funcionamento dos serviços de saúde, configurando-se como diretriz contributiva à materialização dos princípios do SUS, particularmente os da integralidade da atenção à saúde, universalização do acesso e equidade (Duarte et al., 2017).

O acolhimento, estabelecido por meio da Política Nacional de Humanização (2010), não se resume apenas em ações isoladas e pontuais, mas compreende processos de responsabilização e criação de vínculo a partir da escuta; da troca de informações; do mútuo reconhecimento de direitos e deveres; e de decisões que possibilitem intervenções em torno das necessidades dos usuários do serviço de saúde (Pasche, 2010; Duarte et al., 2017).

No campo da saúde, o acolhimento deve ser entendido como uma diretriz ética/estética/política constitutiva dos modos de se produzir saúde, bem como uma ferramenta tecnológica de intervenção baseada na qualificação da escuta, construção de vínculo, garantia do acesso com responsabilização e resolutividade nos serviços. Caracteriza-se como uma diretriz ética, por se pautar no reconhecimento da subjetividade do usuário; estética, na medida em que propõe a dignificação da vida e do viver; e política, pelo fato de implicar o compromisso coletivo de envolvimento no processo de produção de saúde (Ministério da Saúde, 2010; Pasche, 2010). Dessa forma, inscreve-se como uma tecnologia do encontro, um regime de afetabilidade, um lugar de exercício da alteridade, que considera o processo de reconhecimento do outro e de suas diferenças, singularidades e saberes, legitimando o seu conhecimento e suas necessidades de saúde (Campos et al., 2018; 2020).

Nessa perspectiva, na fala da P4, pode-se perceber o quanto ela se sente acolhida, no sentido proposto pela legislação, e o quanto manifesta que a equipe é eficiente e aberta na resolução de suas demandas:

Eu gosto muito, tanto da equipe do posto ali, são excelentes, são ótimos, a hora que eu precisar eu vou lá verificar a pressão, tão sempre prontos e no grupo também, se a gente quer esclarecer alguma dúvida, alguma coisa, eles tão sempre prontos (P4, comunicação pessoal, 23/05/17).

Nessa mesma direção, Oliveira et al. (2016) apontam o acolhimento como um mecanismo de inclusão, uma forma de atenção à demanda espontânea, que promove uma escuta qualificada, servindo de elo entre a necessidade do usuário e as várias possibilidades de cuidado. A realização dessa acolhida possibilita que o serviço se constitua como uma importante referência para os usuários, que, conforme evidenciado, a ele se reportam por se sentirem cuidados pelos profissionais. Ainda em relação a esse aspecto, estudo realizado por Marchesan (2018), no qual foram entrevistados agentes comunitários, tendo como foco a escuta qualificada, evidenciou o potencial de escuta desses profissionais, os quais demonstraram recursos para escutar e acolher as problemáticas de saúde da população, em especial, no caso do estudo, aquelas que se referem às questões de saúde mental. O estudo traz ainda, em seus resultados, a potencialidade das participantes (agentes comunitárias) em dar uma resposta para as demandas trazidas pelos usuários, assim como acionar a rede de atenção, numa perspectiva de trabalho em equipe.

Assim, diante disso, pode-se inferir que essa equipe de onde o estudo foi realizado tem se direcionado na busca da efetivação de um modelo de cuidado mais humanizado e, por meio de suas práticas, tanto individuais quanto coletivas, tem procurado construir um vínculo, incentivando a autonomia dos usuários. Isso pode ser percebido pela fala dos participantes e também pelas observações realizadas pela pesquisadora, como, por exemplo, quando a equipe de profissionais pede para que os participantes do grupo escolham as temáticas a serem abordadas durante os encontros, ou quando a equipe se organiza, junto da comunidade, para realizar eventos e construir uma liderança comunitária. Nesse sentido, Secco et al. (2017) pontuam que, para haver vínculo positivo, os grupos devem acreditar que a equipe de saúde tem potência e capacidade de resolver seus problemas de saúde.

As participantes verbalizam não ter queixas da equipe e reconhecem sua importância, como mostram os depoimentos:

Até não tenho queixa da área de saúde, quando todo mundo se queixa, tenho sido muito bem atendida. Eu acho que o que elas fazem, dentro do recurso que elas têm, é ótimo. Elas não têm condições de se doarem mais, porque é bem fácil chegar ali “ah, porque eu queria isso” hoje (P5, comunicação pessoal, 13/06/17).

A [nome] até comenta do atendimento do postinho, como é que tá tudo, o quadro de enfermeira, enfermagem, as gurias, eu não tenho queixa também das agentes de saúde, são bem esforçadas. Elas se esforçam aqui pra fazerem crescer o grupo (P8, comunicação pessoal, 18/07/17).

As falas apontam para a satisfação e o reconhecimento que elas referem ter da equipe, assim como o empenho no cuidado, tanto em nível individual quanto coletivo. No contexto da atenção básica, um dos principais indicadores de qualidade do serviço é a satisfação do usuário, a qual, de acordo com a PNAB (2017), deve ser monitorada por meio da oferta de meios de comunicação, como o registro de manifestações de satisfação, críticas ou reclamações, caixas de sugestões ou canais eletrônicos. Entretanto, para se poder abordar a temática da satisfação com os usuários de maneira adequada, é necessário levar em consideração o entendimento dos usuários sobre esse indicador, bem como as características dos serviços a partir de experiências de sua utilização. Assim, a perspectiva do usuário sobre os cuidados que são oferecidos baseia-se em critérios subjetivos, de ordem cognitiva e afetiva (Teixeira et al., 2014; Santos et al., 2020).

Um aspecto a ser destacado na efetivação do vínculo é o reconhecimento nominal dos profissionais da equipe. A grande maioria dos participantes, ao se referirem aos profissionais, falavam o nome de cada um. Teixeira et al. (2014) colocam que o usuário exerce melhor seu direito de cidadania quando percebe o profissional para além das suas atribuições e, assim, utiliza da nomeação deste, como um importante indicador de formação de vínculo. Teixeira et al. (2014) apontam, ainda, que é indispensável para produção de vínculo que o usuário reconheça a equipe de saúde da família e seus componentes como responsáveis por sua assistência. Este aspecto pode ser observado em diversos momentos, especialmente quando os participantes referem que a equipe faz todo o possível para atendê-los com rapidez e eficiência, constituindo-se como uma referência quando eles necessitam de algum cuidado.

Os participantes parecem entender que existe uma série de fatores externos que perpassam as práticas dos profissionais, que estão além de sua vontade, como mostram os seguintes relatos: “A gente vê muitos aí, chegam lá já são meio brutos assim pra lidar. A [nome de uma agente] mesmo, às vezes ela não tem culpa, mas tem muitos que são meio grosseiros com a pessoa” (P9, comunicação pessoal, 16/08/17).

Foi a segunda que eu fui ali consultar, mas o médico tá de férias. É o direito dele, ele trabalha, tem que tirar férias. Ninguém vai trabalhar sem tirar férias. Mas aí outra senhora disse: “Ahh, o doutor tá de férias?”. Eu disse “Sim, ele não é escravo, e a princesa Isabel já libertou faz tempo” (P6, comunicação pessoal, 26/06/17).

As falas desses participantes deixam claro que eles percebem as dificuldades encontradas diariamente pelos profissionais no exercício de suas práticas e se solidarizam com as possíveis limitações ou dificuldades. Essa empatia parece estar ancorada no vínculo que mantém essas relações e no acolhimento que se efetivou.

Nesse sentido, o modelo de assistência, em muitas ocasiões, fortaleceu a cultura nos serviços, em que a qualidade está intimamente associada aos procedimentos técnicos. Apesar disso, o conceito de resolutividade não se limita apenas em se ter uma conduta protocolar, mas em oferecer possibilidades de se usar todos os recursos disponíveis para eliminar o sofrimento do usuário, que deve sair do serviço com a certeza de que tudo foi feito para solucionar seu problema (Santos et al., 2020).

Assim, um dos pilares da Atenção Básica/Estratégia Saúde da Família (ESF) é a criação de laços de compromisso e corresponsabilidade entre profissionais de saúde e a população. Isso promove uma relação de confiança e respeito que garante não só maior qualidade do serviço prestado como o reconhecimento do profissional perante a população. Constrói-se, por meio da identificação das necessidades, valorização da queixa, subjetividade, comunicação social e relação de escuta e de empatia com o usuário (Teixeira et al., 2014; Secco et al., 2020).

No presente estudo, parece que os participantes, por se sentirem atendidos, acolhidos e terem nos profissionais uma referência, desenvolveram uma atitude de empatia com a equipe. Assim, pode-se destacar que as relações construídas entre os usuários e a equipe se encontram fortalecidas, expressando o que de melhor se poderia prever em termos de pressupostos e legislações atuais e da lógica de cuidado.

A equipe e a Produção do Cuidado: O Trabalho Vivo em Ato

Durante a realização do estudo, pôde-se perceber características muito importantes da equipe, tais como o cuidado, o afeto e a dedicação dos profissionais em várias atividades. Pode-se constatar, pelo relato da P3, a atenção com que as profissionais que organizam o grupo tratam os participantes: “Olha, o que mais me chama atenção é a atenção que essas gurias que organizam o grupo dão para as pessoas, essas agentes de saúde” (P3, comunicação pessoal, 23/05/17). Da mesma forma, a P2 reconhece o cuidado da equipe em diversas situações:

Eu sempre digo pro meu esposo, eu vejo no pessoal amor, carinho. Eu vejo as pessoas que já tão com idade, com dificuldade, né. E as gurias vão lá na porta, vem com o braço um em cima do outro, acho que isso me marca bastante. Acho muito bonito. Muito bonito o carinho, o abraço (P2, comunicação pessoal, 18/04/17).

As P2 e P3 relataram suas percepções da equipe, definindo-a como cuidadosa e afetiva com os integrantes do grupo. Nesse sentido, no campo da saúde, o cuidado é um conceito ampliado, que perpassa em algum grau todas as políticas públicas e abrange práticas de saúde diversas. Entretanto, para que estas tenham como produto final o cuidado, faz-se necessário que, no interior dos serviços, o acolhimento, as relações de responsabilidade, a autonomia dos sujeitos envolvidos, a resolubilidade e a integralidade estejam sendo realizados cotidiana e permanentemente (Merhy et al., 2019). Alguns autores afirmam que, em relação aos modos de produção de cuidado nos serviços de saúde, é preciso (re)construir algumas práticas até então predominantes, como aquelas embasadas no modelo biomédico, a fim de que a finalidade do processo de trabalho nesse contexto seja a produção de um cuidado mais humanizado e relacional (Merhy, 2002; Pessini, 2000; Merhy et al., 2019).

Dessa forma, Boff (1999) e Pessini (2000) definem o cuidado como uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento para com o outro. Boff (1999, p. 33) refere que “o que se opõe ao descuido e ao descaso, é o cuidado”, e este é “uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro”. Já Pessini (2000, p. 236) afirma que “cuidar, mais do que um ato isolado, é uma atitude constante de ocupação, preocupação, responsabilização e de envolvimento de ternura com o semelhante”. Assim, pode-se perceber, neste grupo, que o cuidar tem um espaço importante dentro das práticas realizadas pelos profissionais, especialmente pelas agentes de saúde.

Autores como Lopes et al. (2015) enfatizam que o cuidado pressupõe elementos como: reciprocidade, afetividade, atitude acolhedora e respeito com o outro, aspectos que seriam incentivadores da relação usuário-profissional. Pode-se pensar que as relações estabelecidas entre os participantes deste grupo e os profissionais sejam relações de troca e reciprocidade, nas quais a equipe se constitui como referência para suas questões de saúde. Dessa forma, Merhy (2002), ao descrever a produção do cuidado, estabeleceu três categorias para tecnologias de trabalho em saúde. Chamou de “tecnologias duras” as que estão escritas nas máquinas e nos instrumentos e têm esse nome porque já estão programadas, a priori, para a produção de certos produtos; de “leve-duras” as que se referem ao conhecimento técnico, por ter uma parte dura, que é a técnica, e uma leve, que é o modo próprio como o trabalhador a aplica; e “tecnologias leves”, que dizem respeito às relações produzidas no encontro entre usuário-trabalhador, as quais se materializam, especialmente por intermédio de um trabalho vivo em ato, nos momentos de fala, escutas, cumplicidade, acolhimento, resolutividade.

Ainda segundo Merhy (2002), as tecnologias “duras”, “leve-duras” e “leves” são interdependentes e presentes na produção do trabalho em Saúde. Isso se dá porque a produção do cuidado em saúde requer tanto o acesso às diferentes tecnologias quanto a utilização dos diversos saberes que cada profissional de saúde detém. De acordo com Almeida e Merhy (2020), é nos encontros entre usuários e profissionais que se insere o ato de cuidado.

Dessa forma, nos serviços de saúde, o que se deve buscar é potencializar o trabalho no qual o ato de cuidado se faça presente, no qual o profissional, ao se relacionar com o usuário no momento da assistência ou “no espaço intercessor” (espaço do encontro entre o usuário e o profissional), possa realizar o trabalho vivo em ato (Malta & Merhy, 2003). Nesse sentido, a reestruturação dos processos de trabalho, com a potencialização do “trabalho vivo em ato”, surge como fonte de energia criativa e criadora de uma nova configuração na assistência à saúde (Fernandes, 2014).

Nessa perspectiva, os participantes do estudo trouxeram relatos de como esses encontros se fazem presentes em seu cotidiano de saúde, na medida em que reconhecem serem investidos de afeto e comprometimento por parte da equipe. Pode-se perceber a utilização de tecnologias consideradas “leves”, por parte da equipe, especialmente no grupo de promoção de saúde, como momentos produtores de vida, cuidado e vínculos. Nesse sentido, a P2 relata:

E eu vejo as gurias enfeitando o salão, dá trabalho arrumar tudo. Ninguém dá um pila, é o amor, isso me marca bastante. Mas as gurias vêm mais cedo, e arrumam aquela mesa, aquelas rosas vermelhas, aquilo tudo custa dinheiro, custa trabalho (P2, comunicação pessoal, 18/04/17).

A fala dessa participante, quando menciona “as gurias”, está remetendo às agentes comunitárias de saúde que coordenam o grupo. São elas que preparam o cenário e se responsabilizam pela atividade, são as figuras de referência. Durante as observações, pôde-se constatar que essas profissionais ajudam a “dar vida ao grupo”. Elas parecem efetivar dentro desse espaço de encontro e convivência o trabalho vivo em ato. Nesse sentido, Campos et al. (2020) enfatizam o papel de relevância dos agentes comunitários de saúde, como aqueles que identificam demandas e as compartilham com a equipe, além de terem um papel vital como interlocutores entre a comunidade e o serviço de saúde, evitando a fragmentação do cuidado e, ao mesmo tempo, fomentando o cuidado longitudinal.

Quando a P2 fala: “Aquilo custa dinheiro, custa trabalho” (P2, comunicação pessoal, 18/04/17), de fato, realizar essas pequenas tarefas denota um investimento da equipe no grupo, que vai para além do valor material, dos gastos concretos, mas diz respeito a um valor simbólico. Durante as observações, pode-se também presenciar todo o investimento que essa equipe coloca no grupo. Esse investimento parece ser reconhecido pela P2:

A gente vem, se reúne, cada um traz um pratinho, me marca muito e eu acho muito bonito, é ver as gurias da enfermagem e vinham nas cadeira alcançar as coisas pras pessoas, e eu acho muito bonito, porque assim elas querem bem a gente, porque senão não iam tá se dedicando (P2, comunicação pessoal, 18/04/17).

A P2 evidencia o cunho afetivo da relação estabelecida entre os usuários e os profissionais. Parece que, ao reconhecer o investimento da equipe, ela se sente também reconhecida. Nesse mesmo ensejo, a fala da P10 parece bastante ilustrativa: “Mas são essas coisas, essas pequenas coisas que no momento assim se tornam grandes” (P10, comunicação pessoal, 16/08/17). Essas podem ser identificadas como ações que constituem o trabalho vivo em ato (Malta & Merhy, 2003), além de reconhecer que o território é um espaço de forças relacionais (Merhy et al., 2019).

Conforme se pode observar a partir dos fragmentos trazidos pelos entrevistados e pela pesquisadora durante as observações, a relação estabelecida com a equipe, em especial com as agentes comunitárias de saúde, teria um impacto positivo na inserção e permanência dos usuários no grupo, assim como na manutenção deste, destacando que o grupo tem mais de vinte anos de história. Ainda em relação ao papel dos ACS, uma experiência realizada em um município da região central do Rio Grande do Sul, por Secco et al. (2020), destacou que os ACS têm um papel fundamental neste modelo de atenção à saúde. São profissionais que estão mais próximos da comunidade (por fazerem parte do território) e têm um conhecimento das múltiplas vulnerabilidades que se encontram presentes no contexto, as quais produzem sofrimentos e angústias. Por outro lado, essa proximidade tem um potencial para a transformação das relações de cuidado, tanto no que se refere à compreensão das problemáticas quanto por sua forte presença no território.

Nesse sentido, é de suma importância a problematização da nova PNAB de 2017 e seus impactos na composição das equipes, em especial em relação aos agentes comunitários de saúde. A portaria n. 2.436 (Ministério da Saúde, 2017), que instituiu a nova PNAB, além de não priorizar a Estratégia Saúde da Família (ESF) do ponto de vista da indução financeira e propor mudanças nas atribuições comuns e específicas dos profissionais de saúde, realizou, ainda, mudanças significativas nas modalidades e na composição das equipes, flexibilizando a carga horária de profissionais e possibilitando a redução do número de ACS (Silva et al., 2020; Fausto et al., 2018). Essa legislação, ao promover a “relativização da cobertura universal, a segmentação do acesso, a recomposição das equipes e a reorganização do processo de trabalho”, reforça a subtração de direitos, demonstrando o processo de desconstrução e de desmonte do SUS em curso no país, que tem se ampliado a partir do fortalecimento e da adoção da ideologia neoliberal (Melo et al., 2018).

Essa reconfiguração da composição da equipe se mostra ainda mais significativa, na medida em que, de acordo com os resultados do nosso trabalho, um dos fatores mais importantes que pode ter influenciado positivamente no estabelecimento do vínculo com a comunidade, e, consequentemente, no sucesso das atividades do grupo observado, foi justamente a forma como as agentes comunitárias, assim como o restante da equipe, realizavam o processo de cuidado. Isso também foi observado na pesquisa de Marchesan (2018), na qual a escuta qualificada foi um dos aspectos mais significativos dos resultados do estudo. O fato de a equipe encontrar-se completa segundo as prerrogativas da PNAB de 2011, assim como apresentar baixa rotatividade e receber apoio de outros níveis de gestão, pode ter contribuído também para a maior coesão e qualificação da equipe, assim como para a adesão dos usuários ao grupo. Além disso, outros elementos precisam ser considerados no processo de êxito da experiência de grupo aqui descrita, que são a composição dos membros desse grupo, que em sua maioria são idosos e aposentados, além da própria forma de condução do grupo, que tem favorecido a participação dos usuários do serviço nessa prática grupal. Nesse sentido, Secco et al. (2017) apontam para alguns aspectos básicos que possibilitam a sustentabilidade de um grupo, especialmente de um grupo de caráter comunitário ao longo do tempo. Esses aspectos se relacionam com a equipe, os usuários e a própria dinâmica comunitária. As autoras destacam, ainda, que é muito importante considerar a lógica de funcionamento da dinâmica comunitária, e não apenas levar em consideração a lógica de funcionamento dos serviços. Isto é, faz-se necessário conciliar e integrar os objetivos da ESF à dinâmica comunitária na qual se insere, pois os modos e as condições de vida das pessoas da comunidade devem ser considerados e trabalhados como elementos favoráveis ao processo de formação do grupo. Nesse sentido, destaca-se a importância de valorizar essas experiências em que novos processos de trabalho se fazem presentes, em especial aqueles que evidenciam ações de promoção de saúde, constituindo-se em experiências de cunho reflexivo, ético e humano.

Considerações Finais

O presente artigo se propôs a discutir a importância da equipe para a efetivação do cuidado na atenção básica, especialmente na seara das práticas grupais. Pode-se perceber que os profissionais de saúde, especialmente os agentes comunitários, têm uma grande importância, tanto na entrada quanto na permanência dos usuários no grupo de promoção de saúde observado, à medida que estes profissionais têm primado pela aproximação e pelo estreitamento dos laços numa relação mais horizontalizada, valorizando os usuários.

As práticas dos profissionais que coordenam o grupo parecem estar afinadas com os preceitos da saúde coletiva, da atenção básica e do conceito ampliado de saúde. O grupo apresenta um caráter comunitário e parece dar subsídios para a comprovação de que a “tecnologia leve” de cuidado pode ser revolucionária.

Desse modo, sobretudo em tempos nos quais se vive uma crise de valores que assola vários segmentos da sociedade, aproximar-se de uma experiência tão marcada por relações construídas no cuidado é, sem dúvida, reconhecer essa experiência como um ato de ­resistência que deve ganhar visibilidade, evidenciando que, sim, é possível fazer políticas públicas, como preconiza a legislação.

A aproximação com o grupo pesquisado levou à constatação de que é possível construir práticas grupais e coletivas no campo da saúde, em especial na atenção básica, lócus do estudo, ancoradas numa concepção ampliada de cuidado. Reconhecer essa possibilidade é ampliar o olhar para que outras tantas experiências possam se constituir, pois se espera, por meio do compartilhamento deste estudo, fomentar práticas pautadas na construção coletiva e cuidadosa, com valor para as relações, o vínculo e o acolhimento, aspectos que fomentam a produção do cuidado em ato.

Entre os aspectos a serem destacados neste estudo, cabe mencionar a combinação da realização de entrevistas e observações, aspecto que permitiu ampliar o olhar das pesquisadoras e suas condições de análise do fenômeno. Além disso, cabe mencionar a longa trajetória do grupo, que possibilitou conhecer e analisar uma experiência bem consolidada e que expressa um cuidado de cunho longitudinal. As limitações do estudo estão no fato de este estar circunscrito a um único universo. Assim, sugere-se que outros estudos possam ser realizados com foco em práticas grupais na AB, considerando que a realidade brasileira é ampla e plural, de forma que outras realidades e práticas possam ser conhecidas.

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Recebido em: 23/06/2021

Última revisão: 1º/04/2022

Aceite final: 14/05/2022

Sobre as autoras:

Ana Caroline Secco: Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestra em Psicologia da Saúde pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Residência Multiprofissional em Saúde − ênfase Cardiologia, pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Psicóloga pela UPF. Psicóloga no Instituto de Cardiologia de São José (ICSC), Santa Catariana. E-mail: ana.caroline.secco@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2495-6678

Camila Almeida Kostulski: Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista CAPES. Mestra em Psicologia da Saúde pela UFSM. Especialista em Direito de Família e Mediação de Conflitos pela Faculdade Palotina de Santa Maria (FAPAS). Psicóloga pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), atualmente Universidade Franciscana (UFN). Estudante de Doutorado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: camila.ak@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3677-0501

Dorian Mônica Arpini: Psicóloga pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professora titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: monica.arpini@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1667-5112


1 Endereço de contato: Rua dos Andradas, 1465, ap. 507, Centro, Santa Maria, Brasil. CEP: 97010-033. E-mail: camila.ak@hotmail.com

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v14i2.1728